Descrição
Prefácio à obra em português
Cornélio Jansênio (1585-1638), bispo de Ipres, foi um teólogo e filósofo nascido em Leerdam, na Holanda. Jansênio foi um profundo estudioso de Agostinho. Etienne Gilson, renomado tomista, diz sobre Jansênio: “Suas análises profundas são sempre úteis de serem consultadas”1, e não poderia ser diferente, pois leu toda a obra de Agostinho dez vezes e os livros sobre a Graça trinta vezes, o que nos dá uma boa razão para tornar sua obra mais conhecida em língua portuguesa.
A Editora Theóphilus tem suas próprias motivações. A primeira delas é que, sendo uma editora de cunho reformado e protestante, a obra de Jansênio cresce em importância, pois ele foi uma espécie de reformador dentro da Igreja de Roma, embora tenha sido condenado postumamente pela mesma. Jansênio criticou a moral católica romana, questionou a infalibilidade papal, defendeu o princípio da Sola Scriptura e denunciou o crescente semipelagianismo em Roma; essas também foram pautas da Reforma. A segunda delas é que se o semipelagianismo na Igreja de Roma não parou de crescer, pelo contrário, se instalou de vez, e é necessário combater essa heresia.
Este livro foca-se em seu debate com os semipelagianos, os jesuítas, discípulos de Luís de Molina e Francisco Suárez. Os jesuítas, seguindo a tendência católica romana de se afastar de Agostinho, usaram de todos os artifícios, morais e imorais, para destruir o jansenismo. Por outro lado, o jansenismo tinha um caráter conservador e, em certos aspectos, era até mais conservador que a própria Reforma, pois não apenas desejava um retorno a Agostinho, como também rejeitava as inovações criadas com a introdução do pensamento aristotélico no escolasticismo, algo que, em termos gerais, não era negado pelos reformados.
A tendência semipelagiana da Igreja Católica Romana não é recente. Como diz Loofs: “A história do catolicismo é a história da eliminação progressiva do agostinismo”2; ela começa com Santo Anselmo e Abelardo, que questionaram a doutrina agostiniana do pecado original, pela primeira vez, após vários séculos de supremacia indiscutível, e, finalmente, Tomás de Aquino rompe completamente com a antropologia de Santo Agostinho, como ensina a Enciclopédia Católica:
“Depois de desfrutar de vários séculos de supremacia indiscutível, o ensinamento de Santo Agostinho sobre o pecado original foi desafiado, pela primeira vez com sucesso, por Santo Anselmo (m. 1109), que sustentou que não era a concupiscência, mas a privação da justiça original que constituía a essência do pecado herdado (“De conceptu virginal!” in PL, CLVIII, 431-64). Sobre a questão específica, entretanto, da punição do pecado original após a morte, Santo Anselmo estava de acordo com Santo Agostinho ao sustentar que crianças não batizadas compartilham dos sofrimentos positivos dos condenados (ibid., 457-61); e Abelardo foi o primeiro a se rebelar contra a severidade da tradição agostiniana neste ponto… Deve-se notar, no entanto, que essa condição de danação imposta pelo pecado original envolvia, para Abelardo e a maioria dos escolásticos europeus, um certo grau de tormento espiritual, e que Santo Tomás foi o primeiro grande mestre a romper completamente com a tradição agostiniana neste assunto. Ele baseou-se no princípio, derivado via Pseudo-Dionísio dos Padres Gregos, de que a natureza humana, como tal, com todos os seus poderes e direitos, não foi afetada pela Queda.”3
Ao abandonar a antropologia agostiniana a Igreja de Roma perde sua âncora, seu principal alicerce contra o pelagianismo; a consequência infalível é o retorno às doutrinas de Pelágio.
Após a Reforma Protestante, a Igreja Romana endureceu ainda mais sua posição contra a doutrina de Agostinho, como afirma a Enciclopédia Católica, na passagem já citada:
“Na Reforma, os protestantes em geral, mas mais especialmente os calvinistas, ao reviverem o ensino agostiniano, aumentaram sua dureza original, e os jansenistas seguiram a mesma linha. Isso provocou duas reações na opinião católica: primeiro, ao chamar a atenção para a verdadeira situação histórica, que os escolásticos haviam entendido de maneira muito imperfeita; e segundo, ao estimular uma oposição total à severidade agostiniana no que diz respeito aos efeitos do pecado original.”
Cornélio Jansênio tentou ir na contramão da tendência pelagiana de Roma, o que lhe trouxe uma grande desvantagem, ainda mais em um contexto de Contrarreforma. Ele foi radical em muitos aspectos, mas estava correto ao afirmar que apenas buscava defender a doutrina agostiniana contra as inovações escolásticas, enquanto Molina vangloriava-se de ter publicado uma doutrina que nunca havia sido conhecida antes4 e seus seguidores, os Jesuítas, se gloriavam do título de serem Molinistas.
Quanto às inovações escolásticas, principalmente em relação à introdução de Aristóteles na teologia cristã e ao rompimento com Agostinho, Jansênio não está desprovido de fundamento. A Enciclopédia Católica mostra esse paradoxo:
“Além dos professos defensores do agostinianismo, os principais teólogos que pertenciam ao primeiro partido eram Belarmino, Petavius e Bossuet, e o principal fundamento de sua oposição à visão escolástica anteriormente predominante era que sua aceitação parecia comprometer o próprio princípio da autoridade da tradição.”5
A antiguidade e a tradição são princípios fundamentais para manter a pureza de uma doutrina, segundo a metodologia da Igreja de Roma, mas eles não foram fiéis a esse princípio, inovando com os escolásticos que romperam com o agostinianismo, dentre os quais o maior foi Tomás de Aquino. Como diz Frei Josaphat, em sua obra Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito, página 16:
“Logo após sua morte, as teses mais inovadoras foram condenadas pelo bispo de Paris, representante da ortodoxia, sempre vigilante diante das possíveis audácias da Universidade. Tomás se vê então emaranhado numa rede de suspeitas e sua reputação foi enodoada pela pecha de modernista. No entanto, Etienne Gilson, um dos mais conceituados medievalistas, gostava de pilheriar, para introduzir, com jeito, uma grande verdade: “O tomismo foi o único modernismo que triunfou na Igreja.”
Apesar de Jansênio não ter como alvo os tomistas, mas os molinistas, ele acidentalmente ataca os tomistas por causa das inovações filosóficas de seu mestre, ao criticar a doutrina antropológica da Natureza Pura. Segundo ele, essa doutrina é pura filosofia aristotélica e um desvio da doutrina antiga, sendo a raiz de toda a filosofia de Pelágio.
A Igreja de Roma continua sua caminhada rumo ao pelagianismo, e não é por acaso que Romano Amério afirma que há um “espírito laxista e pelagiano”6 na Igreja de Roma. A Editora Paulus, aqui no Brasil, acaba de publicar7 a obra daquele que é considerado o maior dos semipelagianos8, Fausto de Riez, e, como dificilmente a obra de um herege seria publicada, esse fato nos leva a crer que a Igreja de Roma não considera o semipelagianismo uma doutrina herética, pelo menos, não mais. O padre José Maria Iraburu afirma que, ao ministrar um curso para vinte católicos especializados, deparou-se com “três católicos, três pelagianos e quatorze semipelagianos”9, demonstrante, assim, o semipelagianismo predominante na Igreja de Roma. O retorno à teologia agostiniana é urgente!
Por essas e outras razões, a Editora Theóphilus considera importante a publicação desta obra sobre esse grande teólogo. Mesmo que ele tenha certas diferenças com os reformados, não podemos deixar de considerá-lo um reformador dentro do contexto católico romano.
Francisco Tourinho, 21/09/2024.
1GILSON; Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Paulus. São Paulo. 2006. p 306.
2Enciclopédia Católica. (1913)/Ensinamentos de Santo Agostinho de Hipona. Disponível em: https://en.m.wikisource.org/wiki/Catholic_Encyclopedia_(1913)/Teaching_of_St._Augustine_of_Hippo . Acesso em: 21/09/2024.
3 Enciclopédia Católica. Volume 9. Disponível em: https://en.wikisource.org/wiki/Page:Catholic_Encyclopedia,_volume_9.djvu/292 . Acesso em 21/09/2024.
4“Haec nostra ratio conciliandi libertatem arbitrii cum divina praedestiantione a nemine quem viderim bucusque tradita”
“Este nosso argumento para concliar o livre-arbítrio e a predestinação divina não foi ensinado POR NINGUÉM ATÉ AQUI, que eu saiba” – Molina. Concórdia. Q. 23, a. 4 e 5. Disp. 1.
5Ibid 2.
6 AMÉRIO; Romano. Iota Unum: Estudio Sobre Las Transformaciones En La Iglesia En El Siglo XX. 2011. p 42.
7 Fausto de Riez – O Espírito Santo | A Graça (Patrística 51). Disponível em:
https://www.paulus.pt/products/fausto-de-riez-o-espirito-santo-a-graca-patristica-51
8 IRABURU; José Maria. Voluntarismo semipelagiano (I) – Semipelagianos antigos. Disponível em: https://www.institutojacksondefigueiredo.org/teologia-2/voluntarismo-semipelagiano-i-semipelagianos-antigos . Acesso em 21/09/2024.
9 Ibid 8.
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